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8 de Agosto

Querido diário:

Nunca mais te escrevi. A indisciplina é a minha maior tentação. A par disso, os dias preenchidos com várias coisas, nomeadamente tempo para descansar e nem ligar o computador e depois a absorção total de uma vida que foi a minha durante quatro semanas, fez com que ignorasse por completo esta urgência em partilhar tudo.

Significa isto, pois, que muito já se perdeu e que dificilmente conseguirei recuperar para memória futura, ou pelo menos cronológica. Hoje nem tentarei voltar à cronologia que estava a tentar seguir. Para além de isto ficar cheio de flashbacks, nem sequer vou conseguir seguir uma linha cronológica muito lógica quando os fizer!

Hoje escrevo-te sobre hoje. Sobre o que sinto hoje depois de Compostela. Sei que parecerá altamente pretensioso ou então um pouco religioso, mas de alguma maneira consigo subentender que existe, para mim, um antes e um depois deste mês de Julho; um antes e depois de Compostela. O que dá, precisamente, A.C. e D.C., para juntar à festa.

Julho e Compostela foram, aliás, cheios de curiosidades, coincidências e episódios surreais. Na maior parte dos casos, coisas superficiais e divertidas, que me fizeram e fazem ainda rir ao recordar. Mas houve momentos em que, estranhamente, consegui sentir pequenas mudanças em mim no momento em que aconteciam. Fiquei presa a uma recordação exacta, ao ver, sentada nas escadas da Praza Quintana, o concerto do Xoel López num domingo ao final do dia. O sol foi-se pondo lentamente, até às 22h30, deixando Compostela com aquela luz de solpor incrível e mágica. A lateral da Catedral, ainda que com plásticos e um pedaço de uma grua das obras para o Xacobeu 2021, fez-me sentir muito esmagada mesmo assim. A melodia que saía do palco, deste Xoel que nunca tinha ouvido mas que agora é a banda sonora de todos os meus dias - seja porque procuro ouvir ou porque me vem à cabeça - fez-me viajar muito.

Mas, ao contrário do que já me aconteceu muitas vezes com algumas memórias e com canções, não para o passado. Não para reviver tempos felizes ou tristes. Viajei para o presente e, talvez, um pouco para o futuro. Olhei à minha volta e percebi bem onde estava: em Compostela. Sentada em frente a uma das amigas que lá fiz, a sentir o quente da pedra na escada em que estava, a ouvir aquele concerto maravilhoso, a ver a Catedral, o pôr do sol, a gente em volta, aquela cidade incrível em que tive a sorte de poder estar e viver como se fosse mesmo minha.

E agora é. E foi aqui, a essa sensação, que aquele concerto me transportou; ou, melhor, consolidou. Senti isto desde que lá cheguei e senti mais: que estava no sítio certo e que era meu, só meu. Como o trajecto que até ali me levou e aquele que sabia que ia continuar a traçar. O meu! Há provavelmente anos não sentia esta certeza de estar no sítio certo dentro e fora de mim. Vieram-me as lágrimas aos olhos porque este sentimento me emocionou; curiosamente, enquanto o Xoel López tocava uma música em particular, que mais tarde, já em casa, ouvi com mais atenção.

O videoclip e uma pequena sinopse do mesmo explicam, de alguma maneira, aquilo que a letra diz: entre o emaranhado dos dias, que nos fazem sentir presos e com pouca força para ultrapassar todos os obstáculos (desfazer todos os nós), apercebemo-nos às vezes, ao olhar para trás, que já fizemos o caminho que julgávamos impossível. Já está. Já ultrapassámos, já chegámos, já conseguimos. E continuamos a avançar.

Estou tão certa que é nesse momento da minha vida que estou que até me impressiona. Depois de tantas dúvidas sobre tudo - mas tudo - hoje sei quem sou e quem quero continuar a ser. E também sei que não foi Compostela que me ofereceu isso: mas ofereceu-me um espaço onde eu pude finalmente percebê-lo. Não me lembro da última vez que senti esta certeza, esta pertença feliz e tranquila no meu mundo. 

É este. E Compostela faz parte dele. Ainda bem. Hoje, no penúltimo dia da primeira semana completa de trabalho desde que regressei, embora com algum sono e mortinha - como sempre - por chegar a casa, descalçar-me e deitar-me no sofá em retiro, sinto-me maravilhosamente bem. 

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